fotografia enquanto documento

quarta-feira, 21 de julho de 2010

fim da linha... ou não




Parafraseando o sábio professor André Ancona Lopez, "Fusões são inevitáveis no mundo globalizado". Sabemos que a turma da disciplina possui dois blogs abordando o mesmo tema - fotografia - e, somando o pequeno número de componentes nestes, resolvemos unir esforços e administrar uma só página.

A plataforma escolhida para dar continuidade aos trabalhos, foi, no caso a do grupo Imagem & Ação, hospedado no endereço http://imagemacaodiplomatica.blogspot.com. Nos vemos por lá! :)

terça-feira, 6 de julho de 2010

uma imagem vale mais que mil palavras?


Após alguns estudos históricos e várias declarações de Hugh Van Es, o autor da fotografia, ao contrário do que a mídia declarou, a imagem não mostrava a evacuação de agentes da CIA, mas uma outra operação onde alguns vietnamitas eram transportados. Prova disso é que a foto data de alguns meses antes da declaração oficial de término da guerra.

Fiz uma "varredura" em sites de busca como o Google e o Bing, e, dentre centenas, encontrei apenas duas páginas que abordavam o fato da forma correta. É como dizem: uma mentira repetida mil vezes, se conveniente, torna-se verdade.

Diplomaticamente falando, é um clássico exemplo de "autêntico, porém inverídico". É correto utilizar imagens inverídicas para mera ilustração de fatos históricos?

Toda essa discussão acerca da veracidade das informações da fotografia me lembrou um artigo publicado recentemente na Revista Piauí (44), que aborda um caso muito semelhante. Trata-se daquela famosa fotografia tirada por Jimmy Sime, onde crianças mostrariam claramente as desigualdades sociais da Grã-Bretanha do início do século XX. O artigo é de autoria de Ian Jack, colunista do jornal The Guardian, que investigou os personagens da fotografia na eterna busca da verdade por trás da imagem.

Concordo que o texto é extenso, mas a forma como o assunto foi abordado faz valer a pena. É matéria para ler e guardar!

Quase desde a sua invenção, a fotografia adquiriu o costume de transformar pessoas em símbolos por acidente. Um pintor pode gastar um ano inteiro numa tela, construindo a representação personificada de uma ideia abstrata - como "O Triunfo da Verdade" ou "A Recusa da Tentação" - em todo seu esplendor visual. Mas a câmera só tem uma fração de segundo para capturar uma cena. E se essa cena for de algum modo marcante e memorável - em sua composição, tema, luz - ela pode se tornar "icônica", ou seja, seus elementos podem ser entendidos como uma referência a emoções, conflitos e problemas de ordem bem mais geral.

Quando o obturador dispara, um futuro metafórico desse tipo raramente é imaginado pelo fotógrafo ou seus modelos, que podem nem mesmo estar cientes de que uma foto está sendo tirada. E o instante captado tanto pode ser banal quanto extraordinário: um casal que se beija numa rua de Paris, um camponês e sua família na Califórnia, uma criança queimada que corre pela estrada no Vietnã. Uma foto assim pode acontecer em qualquer lugar. Até mesmo num tradicional jogo de críquete inglês.

Em 1937, já fazia 132 anos que as duas escolas particulares mais célebres da Inglaterra, Eton e Harrow, vinham disputando jogos anuais de críquete, a modalidade de esporte coletivo com bola mais antiga e duradoura do mundo. É provável também que a partida fosse, como continua a ser, a competição disputada há mais tempo na história do esporte.

Junto com as corridas em Ascot e as regatas de Henley, as partidas entre Eton e Harrow no estádio Lord's Cricket Ground, ou Lord's, em St.John's Wood haviam se transformado num dos momentos altos da temporada social londrina. Duravam dois dias, e atraíam grandes multidões - os espectadores chegaram a mais de 30 mil na primeira década do século xx. Alunos e ex-alunos das duas escolas compareciam com as suas famílias, de modo que a plateia reunia juízes, diplomatas, escritores populares (e impopulares), proprietários de terras, membros do Parlamento, financistas, bispos e duques: riqueza, privilégio e distinção de todo tipo. De suas carruagens emergiam cestas de piquenique com sorbets e champanhe gelada, e almofadas para tornar mais macios os assentos de madeira das arquibancadas. O público masculino comparecia de casaca e cartola, as mulheres de chapéu e vestido de verão.

Quanto aos próprios alunos (os harrovians e etonians), cabia-lhes apresentar-se de acordo com a norma de formalidade máxima exigida para a ocasião. Com pequenas variações de estilo, que apenas um estudioso muito capacitado do sistema social inglês conseguiria distinguir, os estudantes das duas escolas envergavam a indumentária que em algum momento do século xix tinha se transformado no uniforme do gentleman inglês: cartola, casaca, colete de seda e bengala.

Na manhã da sexta-feira, 9 de julho de 1937, Peter Wagner e Thomas Dyson estavam assim paramentados junto ao portão do Lord's. Ambos estudavam em Harrow e estavam com 14 e 15 anos de idade, respectivamente. A multidão que compareceu ao jogo era numerosa e elegante. Dela faziam parte o deão anglicano de Durham, o magnata do gim Walter Gilbey, a mulher e o filho do eminente estrategista militar Basil Liddell-Hart, e o exótico Alake de Abeokuta, um simpático potentado nigeriano que posou para fotografias em todo o esplendor de seu traje africano.

Meninos que viviam nas redondezas, convertidos em carregadores por um dia, retiravam as cestas de vime dos carros que chegavam e as transportavam até a beirada do campo. A família Wagner combinara um programa especial. Peter e seu amigo Thomas Dyson (apelidado de Timmy ou Tim) viriam de Harrow já de malas prontas e, ao final do primeiro dia do jogo, partiriam diretamente para a casa de campo da família Wagner, onde passariam o fim de semana. O jogo começaria às onze da manhã, e pouco antes os Wagner viriam encontrar os dois rapazes no acesso conhecido como Grace Gates. Não poderia haver engano quanto ao ponto de encontro. Os Grace Gates eram de longe a mais esplêndida das entradas do Lord's.

Os dois rapazes esperavam, e os minutos corriam. Nenhum sinal do carro. Peter acabara de se matricular em Harrow, no começo do semestre de verão. Tim entrara no ano anterior. Peter era o menor e o mais jovem, e provavelmente também o mais inteligente dos dois, pois conquistara uma bolsa e Tim não. Conheciam-se através dos pais - embora o casal Wagner frequentasse círculos diferentes do casal Dyson, a amizade entre eles nascera durante um cruzeiro. Podemos especular, portanto, que a espera deixasse Peter mais ansioso que Tim. A julgar por seus problemas posteriores, ele efetivamente devia ser o mais nervoso dos dois. E o peso da responsabilidade (seus pais, atrasados) talvez o tenha feito dar as costas para Tim e voltar os olhos para o oeste, fixos no provável caminho de chegada do carro da família.

Enquanto isso, Tim se entretinha com outras distrações. Três meninos das imediações o encaravam, e havia um homem na beira da calçada apontando uma câmera em sua direção. Jamais saberemos certas coisas. Não temos como descobrir se o homem com a câmera na mão pediu aos três meninos locais para entrarem na foto, ou se estes já estavam ali por acaso; se riam ou zombavam de Dyson e Wagner; se o fotógrafo instruiu Dyson a desviar um pouco os olhos da lente; ou se o momento deixara Dyson e Wagner agudamente conscientes dos trajes que usavam - as cartolas, os coletes, as flores na lapela e as bengalas. O filme captou um instantâneo que sugere uma indiferença majestática dos dois estudantes para com os garotos mais pobres a seu lado, como se esses meninos, além de meros espectadores, fossem também seus súditos.

O momento passou, a manhã seguiu seu curso. O fotógrafo e os meninos locais desapareceram, o carro dos Wagner finalmente chegou. E a contribuição mais duradoura daquele jogo de críquete para a história acabou ocorrendo antes que a bola entrasse em movimento, na fração de segundo em que o obturador se abriu para captar uma imagem congelada de cinco meninos. No dia seguinte, o News Chronicle publicou a foto em três colunas, no alto da primeira página, sob o título "Toda Imagem Conta uma História". E a legenda dizia apenas "Junto ao portão do Lord's, onde os jogos entre Eton e Harrow começaram ontem".

E que história específica contava essa imagem? A apresentação sucinta feita pelo jornal deixava toda interpretação por conta do leitor, mas como o News Chronicle era um diário que defendia posições de esquerda, a mensagem implícita era bastante clara: a foto ilustrava o escandaloso abismo entre ricos e pobres na Grã-Bretanha.

Quando a família Wagner viu a foto pela primeira vez, sua reação foi de divertimento. "No começo, achamos graça", contou-me Penelope, irmã de Peter Wagner, "porque os dois meninos estavam com a cara tão chateada." Nos anos que se seguiram, porém, a graça foi se desgastando. A foto, diz ela, ficou famosa "pelas razões erradas". Como outros personagens ligados à imagem, Penelope sempre se referia a ela, num tom contrariado, como "aquela fotografia". O que não é nada surpreendente, pois Wagner e Dyson se transformaram, no decorrer das sete décadas seguintes, num símbolo genérico de privilégio e arrogância social. Os dois meninos acabaram entranhados na malha profunda da psique nacional inglesa.

São três os equívocos mais recorrentes em torno da foto no portão do Lord's: que ela mostra uma dupla de alunos de Eton; que foi tirada por um dos maiores fotógrafos documentaristas britânicos, Bert Hardy; e que os outros três garotos são menores abandonados ou delinquentes, no inglês londrino scruffs, toughs ou urchins [termos mais ou menos equivalentes a "meninos de rua", "moleques" ou "pivetes"].

A confusão entre Eton e Harrow surgiu do outro lado do Atlântico. No dia 2 de agosto - três semanas apenas depois que a foto foi tirada - a revista Life, de Nova York, publicou um ensaio fotográfico de duas páginas sobre o jogo, como parte de uma série intitulada "A Câmera no Exterior". O ensaio não levava muito a sério nem o críquete nem seus ritos sociais, tratando o conjunto como uma espécie de curiosidade antropológica que o leitor americano podia achar exótica e divertida. O críquete era "um jogo arrastado e não violento" com a simplicidade toldada por "uma infinidade de pequenas regras, precedentes e convenções". A legenda da Life identificava os majestáticos Wagner e Dyson (cujos nomes não eram citados) como jovens alunos de Eton, postados à entrada do campo de jogo, o Lord's, "ignorando os meninos locais".

O fotógrafo, figura bem menos ilustre que Bert Hardy, foi Jimmy Sime. Ele trabalhava para a agência londrina Central Press, que deve ter vendido os direitos americanos da imagem por meio da agência Associated Press, o que explicaria o crédito da Life. Esta é certamente a mais famosa das fotografias de Jimmy Sime, mas nem por isso se deve esquecer que ele foi um repórter fotográfico de talento, com uma carreira de sucesso que começara antes da irrupção da Primeira Guerra Mundial e só terminaria em meados da década de 60. Naquela manhã de julho de 1937, ele teve a percepção de algo singular no contraste entre aqueles dois tipos de meninos - a cena podia ter saído de um filme de Charlie Chaplin. Sua mente teve um estalo, e sua máquina fez clique.

Quatro anos se passaram. Em 1941, os cinco meninos reemergiram na revista ilustrada inglesa Picture Post. Na edição de 4 de janeiro, a foto de Sime abre um artigo em prol da reforma do sistema educacional inglês. Seu autor, A. D. Lindsay (mais tarde Lord Lindsay), professor do Balliol College de Oxford, afirmava que a Grã-Bretanha precisava se tornar um outro país, socialmente muito mais igualitário, depois que vencesse a guerra. A primeira frase do texto de Lindsay afirmava que o aspecto "mais obviamente errado" da educação inglesa era a existência de dois sistemas distintos, um para os ricos e outro para os pobres. A legenda da foto suplementava seu argumento: "Entre os dois grupos existe uma barreira deliberadamente erguida por nosso sistema educacional. Temos o dever de remover essa barreira - de incluir as escolas particulares no esquema geral da educação." A Inglaterra ainda sofria de uma persistente divisão de classes.

Nos trinta ou quarenta anos que se seguiram à Segunda Guerra teve-se a impressão de que esse problema estava a caminho de ser solucionado. Parte da visão que a Picture Post propunha para o futuro se realizara: as barreiras mais impenetráveis entre as classes começaram a ficar menos rígidas, as elites sociais sentiram-se devidamente ameaçadas, as universidades aumentaram suas vagas e mais alunos das escolas públicas ganharam acesso a elas. Na década de 70, a riqueza nacional da Grã-Bretanha estava mais bem distribuída do que jamais estivera - e do que jamais voltaria a ser.

A economia neoliberal entrou em cena na era de transformações inaugurada por Margaret Thatcher e continuada por Tony Blair, e as disparidades consequentes deram novo alento a antigos incômodos. Quando a editora Routledge saiu a campo à procura de uma ilustração para a capa de A Psicologia da Classe Social, de Michael Argyle, em 1993, a foto de Sime, batida há mais de cinquenta anos, foi a imagem escolhida. Cinco anos mais tarde, a Yale University Press fez a mesma escolha para o livro Classe na Grã-Bretanha, de David Cannadine.

Os cinco meninos também estiveram involuntariamente a serviço dos jornais e revistas que procuravam humanizar seus artigos de fundo sobre as disparidades sociais. Em apenas dois anos, a foto de Sime ilustrou um editorial do Guardian sobre as desigualdades da educação moderna, uma coluna do Sunday Telegraph intitulada "O antigo sistema de classes continua a alimentar a culpa burguesa", e um artigo no Daily Telegraph reivindicando acesso mais amplo a Eton, o que voltava a associar Wagner e Dyson à escola errada.

Com o advento de arquivos digitais e da transmissão eletrônica, a localização e utilização de fotografias antigas ficaram corriqueiras. E os blogs que discorrem sobre classes sociais raramente resistiram a reproduzir a foto de Sime. A imagem adquiriu tamanha notoriedade que, em 2004, foi incluída numa série de quebra-cabeças intitulada "Clássicos em Preto & Branco", que também trazia o famoso flagrante de peões na construção de um arranha-céu de Manhattan almoçando empoleirados numa viga a centenas de metros acima do solo. A essa altura a foto adquirira um título. O nome Toffs and Toughs [algo como Almofadinhas e Trombadinhas] aparece na caixa do quebra-cabeça e no catálogo on-line dos arquivos da Getty Images.

Em 1998, o jornalista Geoffrey Levy publicou um belo artigo no Daily Mail que trazia pela primeira vez os nomes dos cinco retratados. Os "meninos de rua" da foto eram George Salmon, Jack Catlin e George Young, todos de 13 anos. Moravam nos arredores do Lord's e eram colegas de turma na escola St. Paul's Bentinck, da Igreja Anglicana. Pelo que conta Levy, os três tinham ido ao dentista na manhã do jogo e depois resolveram matar aula para ficar rondando a entrada do estádio.

A partida entre Eton e Harrow era uma oportunidade de ganhar trocados para qualquer menino que se dispusesse a abrir portas de táxis e carregar sacolas, ou levar de volta as almofadas usadas aos comerciantes que as alugavam. "Acho que conseguimos juntar uns dois shillings cada um", contou George Young a Levy. "Nem prestamos muita atenção ao modo como aqueles almofadinhas se vestiam - apenas deduzimos que eram ricos. Foi quando apareceu um fotógrafo, dizendo: 'Fiquem um pouco mais juntos para eu tirar uma foto de vocês.'"

Young era o mais novo de seis irmãos que dividiam um apartamento de dois quartos com os pais. George Salmon tinha mais oito irmãos, e morava com eles, os pais e o avô num apartamento de quatro quartos. Jack Catlin tinha uma irmã e três meio-irmãos do casamento anterior da mãe; quantos quartos eles ocupavam não se sabe. O pai de Young trabalhava na pavimentação de ruas e estradas. O pai de Salmon era capataz numa fábrica de manteiga. O de Catlin era funcionário dos Correios.

Todos viviam nos arredores do terminal ferroviário de Marylebone, nas circunstâncias tipicamente difíceis da classe trabalhadora londrina da época. Na foto de Jimmy Sime, Catlin, o mais alto dos três garotos, pode estar usando um paletó que herdou do pai, enquanto Young ainda precisaria crescer bastante para preencher corretamente as suas calças. Mas meninos de rua? Todos usam camisas brancas de colarinho aberto, e estavam com calçados que eram os tênis da época.

Quando o jornalista Geoffrey Levy esteve com Young e Salmon em 1998, os dois eram septuagenários satisfeitos e realizados. Ambos estavam casados há 53 anos. Ambos tinham largado os estudos aos 14 anos, servido na Marinha Real e participado de combates a bordo de destróieres e fragatas. Mais tarde, Salmon trabalhara como contramestre para as Indústrias Metalúrgicas Imperial, e ajudara a firma a criar uma rede de entrepostos por toda a Europa. Young fundara um serviço de limpeza de janelas e acolhera os quatro filhos em seu negócio.

Salmon tinha um apartamento perto do Lord's, e o apartamento de Young no Barbican era "elegante e confortável". Os dois tinham acumulado grande número de netos e bisnetos. "Sempre fui bem feliz", disse Young a Levy, "como também éramos no tempo de garotos. Você não precisa ser rico. Tivemos uma vida muito rica."

Doze anos mais tarde, não encontrei qualquer pista de nenhum dos dois. O terceiro do grupo, Jack Catlin, mudara-se para Weymouth. Quando telefonei, sua mulher me disse que ele estava com a saúde demasiadamente frágil para atender, acrescentando que de qualquer maneira ele nunca achava bom falar "daquela fotografia".

Fiquei com a impressão de que Jack Catlin talvez tenha sido mais ambicioso e mais atento a questões sociais que seus dois colegas de escola. "Eles deram certo", acrescentou a senhora Catlin. Jack Catlin também passara a guerra na Marinha e depois entrara para o serviço público, onde atingira uma posição de certa importância no Departamento de Saúde e Seguridade Social. Na aposentadoria, era um homem satisfeito e ativo. Sua mulher me contou que, quando um jornal convidou os três homens a se reunirem e posar para a mesma fotografia na entrada do estádio, Jack se recusara. E entendi o porquê. Ser estereotipado como um menino pobre de Londres - ou até um menino de rua - pode ter sido exasperante para um homem que subira na vida e, provavelmente, não sentia a menor nostalgia das ruas de sua infância no entreguerras.

Quando se debate a questão das classes sociais, exemplos específicos raramente ajudam na argumentação. No caso da foto de Sime, nenhum dos dois alunos de Harrow vinha de famílias que, à época, seriam consideradas parte da elite inglesa. O pai de Peter Wagner era dono de uma corretora de valores e de um talento especial para a eletrônica. Descendia de alemães que haviam chegado a Hampstead (via África do Sul) em torno de 1900. O pai de Tim Dyson era um militar profissional de Huddersfield, no Yorkshire. Oficial da Artilharia Real, fora mandado para a Índia em 1937.

Quando Peter entrara para Harrow, seguindo o exemplo do seu pai, a família se mudara para uma casa de campo em Surrey, dotada de uma torre e jardins com lagos, onde o pai Wagner mandou construir uma quadra de tênis. Era rico. Tinha carros esplêndidos. Primeiro comprou um Minerva, uma luxuosa limusine belga para as pessoas que não podiam pagar um Rolls-Royce, e em seguida um Rolls propriamente dito. Foi num desses carros que a adolescente Penelope e seus pais viajaram de Russ Hill até a porta do Lord's em 9 de julho de 1937. Ao chegar, se depararam com Peter e seu amigo Timmy, irritados, à sua espera. O fotógrafo e os meninos da vizinhança já tinham ido embora.

Numa tarde de inverno, tomei o trem até uma cidadezinha em Surrey onde a irmã de Peter Wagner, Penelope Waley, vive num bangalô no final de um beco sem saída. E ela me contou o que acontecera com seu irmão mais novo.

Deixando Harrow em 1940, ele fora estudar ciências naturais em Cambridge, até ser convocado para o Corpo Real de Sinaleiros, em 1943. A partir daí, as coisas começaram a dar errado. Peter sofreu algum tipo de colapso e nunca chegou a prestar serviço ativo. "No Exército", contou sua irmã, "ele adoeceu, e depois ficou meio pancada." No final, disse ela, "ele ficou louco, mas eu nunca soube bem até que ponto".

A mulher de Peter, hoje novamente casada e com o nome de senhora Pauline Barker, tem uma versão diferente: Peter trabalhou com razoável sucesso como corretor, na firma do pai, por três décadas depois da guerra. Mas o final é o mesmo. Em 1979, conta ela, ficou claro que Peter ficara desequilibrado: "Tinha um comportamento irracional e irascível, e tínhamos de tomar providências como esconder dele as chaves do carro."

Ela disse que era importante falar claramente do que acontecera em seguida: "Eu tinha três filhas jovens e precisava protegê-las." Primeiro Peter foi mandado "para uma instituição de Hastings que cuidava de pessoas mentalmente desequilibradas". Certa noite, ela recebeu um telefonema da polícia de Lewes, que o encontrara vagando pelas ruas, pedindo-lhe que levasse o marido de volta para casa. Ela precisou renegá-lo: "Eu disse que não, que ele devia ir para Hastings."

Depois disso, Peter Wagner mudou-se para o que a senhora Barker descreveu como "um asilo sob medida", onde passou dois anos e meio numa ala solitária. E lá morreu no dia 13 de abril de 1984, aos 60 anos de idade.

Uma característica das fotos antigas é a pungência. Os destinos mais variados estão traçados para pessoas que nelas aparecem, com desenlaces que conhecemos e elas não. No flagrante de 1937, o menino Peter Wagner olha para a esquerda, para fora da foto, talvez com ansiedade. Mas é a história de Tim Dyson, o do olhar principesco, que se revela a mais breve e triste de todas.

O último parente vivo a tê-lo conhecido é um primo, o coronel Tom Hall. De linhagem mais nobre, os Hall possuíam uma mansão ancestral em Somerset, onde Tim muitas vezes passava os feriados, pelo mesmo motivo que foi para a casa dos Wagner depois do jogo de 1937 - a orfandade temporária em que seus pais o tinham deixado, transferindo-se para a Índia.

Justamente quando pensei que não tinha mais nada a descobrir, recebi a carta de uma senhora, Margaret Baynham, que anos antes escrevera para um velho ex-aluno que se dedicava a estudar em detalhe o passado de Harrow. Ela se lembrava de cenas e acontecimentos ocorridos quase oitenta anos atrás. Tim Dyson crescera numa modesta casa de tijolos perto de um campo de provas de artilharia. Sua mãe, australiana, tinha um sotaque que a afastava totalmente das outras mulheres de oficiais. E também é possível que falasse sem papas na língua, à maneira australiana, o que sempre podia provocar momentos de embaraço nas mesas de bridge. E talvez fosse esta a ligação com o casal Wagner: como eles, os Dyson também não se misturavam com as camadas superiores da sociedade inglesa.

Um ano depois que a foto foi tirada, os pais de Tim Dyson tomaram todas as providências para que seu filho único fosse passar as férias de verão com eles, na base militar em que moravam, perto de Secunderabad, na Índia. Tim zarpou para Mumbai no final do semestre, e em seguida tomou o trem para atravessar o planalto do Deccan. Era agosto, perto do final das monções, uma época fétida e lamacenta na Índia, conhecida pelas febres. O jovem começou a se sentir mal, médicos acorreram ao bangalô e diagnosticaram difteria. Tim Dyson morreu em Trimulgherry no dia 26 de agosto de 1938, aos 16 anos de idade.

Tudo muda e nada muda. Nas lojas das ladeiras em torno de Harrow ainda se podem comprar casacas, coletes, cartolas e bengalas para as ocasiões especiais da escola. Uma casaca custa 155 libras, uma cartola, 95, uma bengala, 32 - ninharias, se comparadas à anuidade escolar de 28 mil libras. E o que o aluno recebe em troca de tanto dinheiro? Uma boa formação, uma vaga numa boa universidade, conexões sociais, autoconfiança, coisas geralmente reservadas a uma pequena parte da sociedade, que fazem da Grã-Bretanha uma das nações mais desiguais do mundo desenvolvido.

Nos anos que se seguiram à Segunda Guerra, o jogo entre Eton e Harrow perdeu relevo como acontecimento social. Quase ninguém mais vai assisti-los, além dos alunos, alguns com considerável relutância. Hoje, o traje exigido para o público é descrito como smart casual [esporte fino]. E, se um fotógrafo desejasse recriar a foto de Sime, talvez flagrasse cinco meninos vestidos praticamente da mesma maneira - jeans e camisetas de grife -, produzindo uma impressão superficial de igualdade. Mas esta fotografia mentiria ainda mais que a do passado.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

a fotografia enquanto registro histórico


O estudo da história mudou com a fotografia, isso não há como negar. Mas gerou uma situação dúbia: muito do que era transmitido apenas oralmente para depois ser registrado perdeu o sentido, ao mesmo tempo em que tornou obsoleta algumas formas de registro, tornou outras leituras mais claras, visto que a imagem, nestes casos, funciona como um acréscimo, uma rica referência informacional. Segundo PAIVA (2006):

"[...] não é a realidade histórica em si, mas traz porções dela, traços, aspectos, símbolos, representações, dimensões ocultas, perspectivas, induções, códigos, cores e forma nela cultivadas. Cabe a nós decodificar os ícones, torná-los inteligíveis o mais que pudermos identificar sem filtros e, enfim, torná-los como testemunhos que subsidiam a nossa versão do passado e do presente."

Uma imagem pode armazenar tanto elementos da memória individual quanto da coletiva. Assim como o vídeo, é uma referência fortíssima no acompanhamento do desenvolvimento dos lugares. Como registrar uma imagem num suporte é algo muito recente, nota-se o surgimento de uma grande dúvida: no futuro a história será mais valorizada devido ao seu registro em fotografias?


Referências:

Londrina revistada: a fotografia como registro histórico de duas épocas - Jocélia Rosa da Silva Vitachi e Paulo César Boni;

PAIVA, Eduardo França. História e imagem. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006

quarta-feira, 16 de junho de 2010

florence e a expedição langsdorff


Esse mês os brasilienses têm a oportunidade de conferir parte do material produzido por uma das mais importantes expedições pelo interior do Brasil no século XIX: a expedição Langsodorff.

A expedição patrocinada pelo czar russo e liderada pelo Barão de Langsdorff contou com o trabalho de três primorosos artistas Rugendas, Taunay e Hercule Florence, este considerado um dos criadores da fotografia.

Florence ao longo da expedição usou desenvolveu uma espécie de câmera escura, usada pelos pintores desde a renascença como um recurso para planificar a paisagem Era um momento em que a arte estava presa ao retrato fiel da realidade, especialmente a serviço da ciência. Com o fim da expedição Florance permanece no país e continua o desenvolvimento da camara escura, até que por volta de 1935 começa a imprimir rotulos de remédios e propagandas por meio da sensibilização do papel pela luz, o que é à base da fotografia.


Outro ponto que chama atenção aos visitantes da exposição é o fato de que todo o material exposto é original, esta sendo conservado pela Rússia há mais dois séculos e se encontra impecável, formando uma coleção de registros do Brasil do século XIX que vai da desde as tribos indígenas, o relevo, os mapas hidrográficos, o funcionamento da economia e a fauna.


Serviço:
Expedição Langsdorff
Até 17 de julho
Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB
Aberto de terça a domingo de 9h às 21h.

site oficial

quinta-feira, 10 de junho de 2010

fotografia é documento?


Inserida no contexto arquivístico e visando a importância desta para com o seu produtor/acumulador, sim. Mas lembre-se: qualquer documento de arquivo (textual ou imagético) isolado de seu contexto de produção tem sua relevância parcialmente ou totalmente anulada.

A fotografia deixou de ser um mero meio ilustrativo de pesquisa e se tornou matéria prima na produção de conhecimento, mas não possui métodos de trabalho consolidados: imagens são arquivadas ora de acordo com o seu contexto, ora de acordo com os outros meios possíveis (ordem cronológica, agrupados por autor, etc).

Segundo os autores FILLIPI, LIMA e CARVALHO (2002):

"(...) os atributos técnicos e formais da imagem fotográfica assumem um papel relevante no entendimento de questões ligadas à noção de natureza, cidade, progresso, modernidade, morte, infância, indivíduo, identidade, apenas para citar aqueles temas mais recorrentes. Não é por acaso que o incremento na organização de documentos fotográficos institucionais aconteceu concomitantemente à publicação de repertórios e ao crescimento do uso da fotografia como fonte para a pesquisa. Nessa perspectiva, torna-se fundamental, hoje mais do que nunca, a definição de padrões de qualidade na organização e conservação de fotografias em acervos institucionais e na produção de instrumentos de pesquisa."

Ao contrário dos documentos textuais, o trato da fotoimagem como documento de arquivo não está inserido no senso comum, bem como formalidades acerca de sua utilização documental. A comparação do documento imagético com o textual não é viável, visto que são dois meios distintos de difusão da informação, mas que não se sobrepõem. Ao contrário: se complementam.

Em arquivos de documentação administrativa (que servem de referência para os demais), trata-se a fotografia quase sempre como um "anexo", ou um "documento complementar" de ao menos um documento textual.

A metodologia utilizada para lidar com informações imagéticas é uma das grandes causadoras de divergência entre os profissionais e estudantes de arquivo. São inúmeros os debates relacionados à sua classificação, indexação, conservação, preservação, disponibilização para o usuário e, ainda que em um grau menor, sua análise diplomática.

Ao inserir um documento fotográfico em um acervo orgânico, deve-se levar em conta, basicamente, sua classificação, contexto e questões como sua perduração quando atingir o valor secundário. Considerar as particularidades físicas é fundamental no arranjo de documentação fotográfica.

Tratando-se de documentação digital, o pouco interesse acadêmico é ainda mais notório. Essa tecnologia recente gerou um boom na criação de material fotográfico. Refletir sobre questões relacionadas a características intrínsecas de um documento fotográfico, mesmo que digital, pode não parecer viável, visto que suportes eletrônicos permitem a geração de cópias idênticas com facilidade bem como sua difusão quase instantânea. Características diferentes requerem metodologias diferentes.

A fim de possibilitar uma lógica na organização de fotografias em uma instituição, deve-se tratar tanto a fotografia analógica quanto a digital com um zelo ainda maior que uma documentação textual administrativa demandaria: há clara necessidade de classificação, indexação, referências cruzadas, alocação apropriada, etc. Todo um universo de critérios pode ser levantado. Quais vocês, arquivistas, adotariam?

Referências:
Como Tratar coleções de fotografias - Patrícia de Filippi, Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro de Carvalho (2002);

A teoria dos arquivos e a gestão de documentos - Ana Márcia Lutterbach Rodrigues (2006)

segunda-feira, 31 de maio de 2010

de onde viemos, para onde vamos e outras questões existenciais


Fruto da disclina disciplina Diplomática e Tipologia Documental, ministrada pelo professor André Porto Ancona Lopez, este blog foi idealizado a fim de discutir questões referentes à estrutura formal do documento fotográfico, bem como sua tipologia.

Para facilitar o entendimento dos leitores, elaboramos um glossário com termos básicos que eventualmente serão utilizados. Ei-lo:

arquivista: profissional de nível superior, com formação em arquivologia ou experiência reconhecida pelo Estado com a função de organizar, reunir, preservar, controlar e fornecer acesso a informação orgânica e registrada;

arquivo: conjunto de documentos produzidos e acumulados por uma entidade coletiva, pública ou privada, pessoa ou família, no desempenho de suas atividades, independentemente da natureza do suporte;

arquivologia: disciplina que estuda as funções do arquivo e os princípios e técnicas a serem observados na produção, organização, guarda, preservação e utilização dos arquivos. Também chamada arquivística;

diplomática: disciplina que tem como objeto o estudo da estrutura formal e da autenticidade dos documentos;

documento: unidade de registro de informações, qualquer que seja o suporte ou formato;

documento digital: documento codificado em dígitos binários, acessível por meio de sistema computacional;

filme: película ou fita de plástico flexível capaz de fixar imagens em positivo ou negativo;

fotografia: imagem produzida pela ação da luz sobre película coberta por emulsão fotossensível, revelada e fixada por meio de reagentes químicos;

negativo: imagem fotográfica formada quando se impressiona diretamente uma chapa ou um filme, em que os tons claros e escuros do objeto aparecem invertidos;

tipologia: divisão de espécie documental que reúne documentos por suas características comuns no que diz respeito à fórmula diplomática, natureza de conteúdo ou técnica do registro.

Referências:
Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística